10h30. Dia solarengo. O termómetro regista 25 graus, parecem 29º. As 100 cadeiras previamente reservadas no auditório zero estão todas ocupadas, foram necessárias unidades adicionais para acomodar mais participantes. Estamos no 13.º dia de jejum no quadro do Ramadão, abrangendo cerca de metade das 109 pessoas, incluindo 25 mulheres. Quem estivesse de pé junto à entrada do auditório aperceber-se-ia que se estava a assistir a mais uma prova da vontade e capacidade dos guineenses para viverem em tolerância perante a multiplicidade étnica e religiosa dos seus dois milhões de habitantes. Militares. Polícias. Religiosos das comunidades islâmicas, católicas, protestantes/evangélicas e animistas. Diplomatas. Membros das organizações da sociedade civil. Parceiros internacionais do desenvolvimento. Homens e mulheres. Nacionais e estrangeiros. Os intervenientes da sessão de abertura tomam os seus lugares. A sala está quente, a refrigeração deixa a desejar.
O fotógrafo detém-se à entrada do hotel para registar a lona de dois metros de comprimento por um de altura aposta na fachada vítrea da entrada do hotel sito na Avenida Amílcar Cabral, com a inscrição “Workshop – Diálogo sobre Segurança e Democracia na África Ocidental: Reflexões e Caminhos para a Ação[1], 13 de março de 2025.
Os funcionários ultimam a pausa-café, destinada a quem deseja participar, marcando a transição entre a sessão de abertura e a apresentação do Policy Paper – Opções de Resposta Política para a Crise de Segurança e Democracia na África Ocidental[2]. Conduzindo os seus tabuleiros com salgados, doces, sumos, chás e cafés por entre a audiência que se impacienta com o começo do workshop, uma iniciativa promovida pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos da República da Guiné-Bissau em parceria com o Observatório da Paz.
Uma jurista tornada ativista, na qualidade de Vice-Presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH)[3], assume o papel de mestre de cerimónias. É pela voz de Claudina Viegas que cada palestrante procede à apresentação da sua intervenção. A sessão de abertura é presidida pelo Diretor Nacional da Polícia Judiciária da Guiné-Bissau, Domingos Monteiro Correia, o qual interveio em representação da Ministra da Justiça e Direitos Humanos, Dra. Maria do Céu Silva Monteiro, retida pelo Conselho de Estado.
Domingos Correia começa por referir que “o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, tem acompanhado nos últimos três anos com bastante atenção e necessária colaboração institucional, as várias iniciativas de formações dos diferentes atores nacionais, a promoção de diálogo interreligioso, a sensibilização e a educação cívica”, que têm sido desenvolvidas pelo Observatório da Paz – Nô Cudji paz[4] no âmbito do qual se realizou o presente evento, para a prevenção do radicalismo e extremismo violento na Guiné-Bissau.
Para o Diretor da Polícia Judiciária, “a criminalidade organizada em todas as suas formas, o terrorismo, a corrupção e o branqueamento de capitais, são crescentes ameaças ao desenvolvimento, à paz e a estabilidade desta nossa sub-região”. Segundo o senhor Diretor, “o objetivo primário da democracia é assegurar que os conflitos resultantes das relações humanas sejam resolvidos de forma não violenta”, em oposição, acrescenta, “o radicalismo político, social e religioso gera ódio e sentimentos de vingança, com consequências desastrosas para a sociedade.”
Afirmando a presença da Letónia no cenário internacional, tendo exercido funções na Suécia, Portugal, Brasil, Itália, Índia e Sri Lanka, entre outros postos, o Embaixador Artis Bertulis, Chefe da Delegação da União Europeia junto da República da Guiné-Bissau desde 2022, enceta a sua intervenção afirmando que “a União Europeia está fortemente empenhada na promoção da paz e boa convivência. Acreditamos ao mais alto nível que não poderá haver desenvolvimento sustentável sem paz e segurança, e vice-versa.” O senhor Embaixador destaca que o Observatório da Paz incorpora, em todas as suas atividades, uma componente crucial e prioritária, da qual não abdicamos: a dimensão de género. Para Bertulis “a igualdade de género é, e continuará a ser, uma política prioritária nas atividades da União Europeia, tanto interna como externamente.” Para o diplomata, “a promoção da igualdade de género não só contribui para a construção de sociedades mais resilientes, mas também fortalece valores de respeito, de compreensão e de cooperação.”
O seu homólogo, Miguel Cruz Silvestre, Embaixador de Portugal em Bissau desde 2024, na sua intervenção, começa por enaltecer esta ocasião que reputa de “privilegiada”, para se olhar em conjunto “sobre os desafios e as possibilidades que se perfilam no horizonte, na sub-região da África Ocidental, como resultado do impacto das alterações económicas, ambientais, políticas e sociais em curso.”
O Embaixador destacou que Portugal permanece “determinado em apoiar iniciativas que promovam a paz, a estabilidade e o fortalecimento das instituições democráticas”. Fá-lo através da “construção de soluções sustentáveis e inclusivas, trabalhadas prévia e articuladamente com a Guiné-Bissau”, segundo Miguel Silvestre, sendo que em seguida destaca “a capacitação de instituições como o Ministério da Justiça”, designadamente, “a cooperação com a Polícia Judiciária e o Registo Civil”, mas também, acrescenta o senhor Embaixador, “o Ministério da Saúde ou o Ministério da Educação, reconhecendo que estes dois últimos setores são pilares para uma sociedade mais inclusiva e resistente.”
Miguel Silvestre destaca ainda que “a capacitação das forças de segurança e da justiça e o envolvimento da sociedade civil são estratégias essenciais para garantir que a resposta aos desafios de segurança não comprometa os princípios democráticos”. E não pode ser uma iniciativa de curto prazo, um avanço e depois recuo. Para o senhor Embaixador, “é fundamental que os nossos esforços sejam orientados por uma visão de longo prazo, com uma aposta clara na prevenção, na educação e no desenvolvimento socioeconómico como instrumentos de transformação.” Destaca ainda a importância da juventude, que deve ser incluída no debate sobre segurança e democracia. O Embaixador conclui, dizendo, que “hoje, mais do que nunca, é necessário que trabalhemos juntos. Juntos, porque reconhecemos que estes são desafios internacionais. Juntos, porque sabemos que, com a troca de experiências, todos aprendemos e evoluímos – Portugal também. Juntos, em nome do compromisso coletivo com a paz e a justiça social.”
Carolina Quina, Administradora do Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF)[5], que conjuntamente com a LGDH, implementa o projecto Observatório da Paz, financiado pela União Europeia e pela Cooperação Portuguesa através do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., o qual tem adotado uma metodologia em cascata e multiatores, com uma profunda articulação com as autoridades locais, com destaque para o Ministério da Justiça e Direitos Humanos, as organizações da sociedade civil, as associações de carácter religioso, associações que trabalham as causas das mulheres e dos jovens, entre outros parceiros do desenvolvimento. Segundo a Administradora do IMVF, “mais de 3.000 pessoas foram sensibilizadas no quadro deste projeto, das quais 1.415 são mulheres, em mais de 40 eventos e iniciativas”. Quina elencou algum dos marcos mais recentes, como a 3.ª Roda de Mulheres, uma iniciativa que congregou 200 mulheres no Bairro Militar em janeiro de 2025, numa parceria com o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos e o Fórum de Intervenção Social das Jovens Raparigas (FINJOR). Com enfoque no papel das mulheres na prevenção do radicalismo e extremismo violento, Carolina Quina referiu ainda o Encontro Nacional das Mulheres em dezembro de 2024, iniciativa conjunta com o Ministério da Mulher, Família e Solidariedade Social.
Na sua intervenção, em nome do Observatório da Paz, saudou a nomeação do novo Bispo da Diocese de Bafatá, Frei Victor Quematcha.
Para Quina, a “África Ocidental atravessa um período de profundas transformações. Nos últimos anos, assistimos a uma escalada alarmante de golpes de Estado, instabilidade política e ataques de grupos extremistas violentos. Países como o Mali, o Burkina Faso e o Níger têm sido particularmente afetados, enquanto os Estados costeiros, como o Benim e a Guiné-Bissau, enfrentam crescentes ameaças à sua segurança. A persistente fragilidade institucional, combinada com altos níveis de pobreza e desigualdade, cria um terreno fértil para a radicalização e o extremismo.”
Para Carolina Quina o Policy Paper aqui apresentado “oferece uma análise rigorosa dos principais desafios enfrentados pela região da África Ocidental e propõe recomendações práticas para os governos, as organizações da sociedade civil e para outros atores relevantes.”
Agradeceu, encarecidamente, a presença de Alex Vines, Director de África da Chatham House, conhecida como Royal Institute of International Affairs, um dos mais prestigiados think tanks do mundo, amplamente reconhecido pela excelência na análise e formulação de políticas globais. Segundo Quina, “o seu Programa África, em particular, é amplamente respeitado pela análise rigorosa e abrangente das dinâmicas políticas, económicas e sociais do continente, sendo uma fonte confiável para compreender e abordar as complexidades regionais.”
Para o Observatório da Paz, “a colaboração com a Chatham House reforça o compromisso em aliar o conhecimento de ponta a ações práticas, garantindo que as nossas intervenções estão ancoradas nas melhores práticas e recomendações globais.”
Segundo Carolina Quina, “os estudos recentes, como o realizado pelo Observatório da Paz, destacam a importância de uma abordagem centrada nas pessoas, que vá além das respostas securitárias tradicionais.” Para Quina “a injustiça percebida, especialmente entre os jovens, é um dos principais fatores mobilizadores para a adesão a grupos fundamentalistas. A falta de oportunidades económicas, a marginalização política e social, e a ausência de canais eficazes para expressar as frustrações criam um ambiente propício para a radicalização.”
Conclui dizendo que “o caminho para a paz e a democracia na África Ocidental não será fácil, mas é possível. Requer compromisso, cooperação e coragem por parte de todos. Requer que olhemos para além das soluções imediatas e adotemos abordagens holísticas e de longo prazo. Requer que oiçamos as vozes daqueles que estão na linha da frente – as comunidades locais, as organizações religiosas, as organizações da sociedade civil e os jovens.”[6]
A pausa-café separou as sessões. “Eu não bebo café, eu tomo chá” – assim começa a música do cantor Sting, cujo título é Englishman in New York. No Bissau Royal Hotel o título seria “Inglês em Bissau”. Esse inglês pela primeira vez na Guiné-Bissau é Alex Jones – Director de África da Chatham House. É um dos autores do Policy Paper publicado no quadro do Observatório da Paz. De fato listrado azul, camisa branca e gravata vermelha com pequenos desenhos de um elefante, ocupa agora o centro da mesa. Por respeito a todos os guineenses, opta por falar durante 45 minutos em português. Começa por saudar aqueles que estão em jejum. A seguir refere que a Chatham House é “um instituto de políticas independente em Londres com 103 anos de história. O meu instituto é reconhecido por ter recebido, ao longo dos anos, decisores políticos mundialmente famosos, como o Mahatma Gandhi, o Nelson Mandela, o Sekou Toure, Eduardo Mondlane, e Leopold Senghor, por exemplo. O Che Guevara escreveu para nós. Relativamente à Guiné-Bissau – recebemos alguns representantes especiais da ONU, como o João Honwana, o David Stephen e José Ramos Horta. Um reconhecido bissauguineense, Carlos Lopes, é um dos nossos associados.”
Para Alex Vines “existe um perigo de transbordo do flagelo do terrorismo no Sahel para os Estados costeiros, incluindo a Guiné-Bissau e, necessariamente, também para a Europa.” Segundo o investigador, “vemos a ameaça causada pelo terrorismo e, por conseguinte, a necessidade de se atuar para a prevenção do radicalismo e extremismo violento, numa ótica centrada no diálogo com a sociedade civil.”
Para a Chatham House, “o Sahel é a crise humanitária e de segurança que mais cresce no mundo. Tornou-se o epicentro do terrorismo internacional, bem como dos golpes de Estado, mas quem sofre diretamente esse custos são as suas próprias populações.”
Para o Diretor de África, “os militantes sahelianos são mais uma expressão dos conflitos locais do que de jihadismo internacional. Exploram questões locais, como a competição por recursos naturais cada vez mais escassos nas zonas rurais, a fraca representação política nos Estados pós-coloniais e as perspetivas económicas anémicas. Estão também profundamente envolvidos no crime organizado e beneficiaram do rapto de cidadãos locais e estrangeiros.”
Para Vines “uma estratégia eficaz para estabilizar a região deve priorizar a resposta humanitária e investir em projetos de desenvolvimento subnacionais de pequena escala, especialmente nas áreas mais afetadas pela insegurança.” Para o autor do Policy Paper, “a experiência da União Europeia e Portugal ao apoiarem o Observatório da Paz com o IMVF e a Liga são uma boa prática que deve ser reforçada na Guiné-Bissau e aplicada nos países vizinhos.”
O discurso completo do Dr. Alex Vines, o qual merece uma leitura atenta, pode ser consultado no site do Observatório da Paz[7].
Envergando um fato cinzento, camisa azul e gravata laranja salpicada com pequenas bolas brancas, Bubacar Turé exibia uma postura confiante enquanto observava atentamente a sala. Opta por prescindir de apontamentos ou apresentações videoprojectadas. Compreende, em primeira mão, o que significa continuar sentado, hora de almoço dentro, numa sala quente, estando em jejum e assim ter de permanecer. Impunha-se um poder de síntese. A sua sessão visava apresentar os progressos do projeto Observatório.
Para Bubacar Turé, Presidente das Liga Guineense dos Direitos Humanos, o Observatório da Paz “tem o mérito de ter inserido no contexto da Guiné-Bissau, quer a nível das autoridades, quer a nível dos líderes religiosos, quer a nível da sociedade civil, a temática da prevenção do radicalismo e extremismo violento”, até aqui um assunto figurativo em relatórios de entidades multinacionais lidos pelos especialistas e académicos.
Para Turé, outro marco relevante foi “a construção de uma parceria informal em vias de formalização com as principais confissões religiosas no país, do islamismo, ao catolicismo e cristianismo protestante e evangélico, incluindo também a religião tradicional na Guiné-Bissau, o animismo”. O fórum dos líderes religosos será apresentado publicamente em breve.
Bubacar referiu “a mobilização de dois primeiros-ministros e um presidente da Assembleia Nacional Popular, bem como vários Ministras-chave, como a da Justiça e Direitos Humanos, Ministério da Mulher, Família e Solidariedade Social, entre outros” para a construção de iniciativas conjuntas e um diálogo concertado para a elaboração da Estratégia Nacional de Prevenção do Radicalismo e Extremismo Violento.
A nível dos líderes religiosos, mas igualmente a nível dos jovens e das mulheres, Turé destacou “a publicação das 3 declarações para a paz, respetivamente, nas quais são assumidos compromissos claros para a construção de uma sociedade civil resiliente e coesa.”
O único a discursar no púlpito do auditório, Bubacar Turé, decorridos pouco mais de 10 minutos, encerra o workshop agradecendo a presença e o apoio de todos “pela paz, justiça e igualdade de género”.
As forças policiais e militares são as primeiras a posicionar-se para a fotografia de grupo. Os líderes religiosos, bem como as mulheres representantes da sociedade civil, apressam-se a avançar para a frente. Todos querem garantir o seu lugar na imagem. O inglês em Bissau também está lá, discreto, sereno, como quem diz estou aqui para ajudar, estou ao vosso dispor.
Fora do auditório, o lobby do Bissau Royal Hotel, com as suas imponentes colunas de betão armado revestidas em madeira, vive um dia mais agitado com múltiplos eventos em simultâneo. Sofás confortáveis abrigam conversas casuais ou de negócios. Na rua, o calor está mais intenso, mas a baixa humidade torna-o suportável. Quem precisa de caminhar ou seguir para compromissos noutras partes da cidade apressa-se a deixar o auditório. Debaixo do braço levam o Policy Paper, na sua versão impressa bilingue (em português e inglês).
A vida corre com normalidade, aparentemente. Apesar dos desafios, os guineenses demonstram uma resiliência admirável, prontos para assegurar que o mosaico étnico, linguístico e religioso permaneça intacto, urdido por laços fortes que resistem às tensões sociais, económicas e políticas. E, enquanto o dia segue o seu ritmo habitual, fica evidente que a esperança e o compromisso com o futuro continuam a guiar este povo na senda da paz e coesão social.
[1] https://observatoriodapaz.org/workshop-dialogo-sobre-seguranca-e-democracia-na-africa-ocidental-reflexoes-e-caminhos-para-a-acao/
[2] https://observatoriodapaz.org/publicacoes/
[4] https://observatoriodapaz.org/quem-somos/
[6] O discurso completo da Dra. Carolina Quina, do IMVF, pode ser consultado aqui: https://observatoriodapaz.org/discurso-de-abertura-do-workshop-dialogo-sobre-seguranca-e-democracia-na-africa-ocidental-reflexoes-e-caminhos-para-a-acao/
[7] https://observatoriodapaz.org/o-sahel-em-2025-opcoes-politicas-discurso-do-diretor-de-africa-da-chatham-house/