62% da população mundial ameaçada pela sua fé: a importância do Dia da Liberdade Religiosa e do Diálogo Inter-Religioso

Certamente, não passaria pela maioria daqueles que professam uma religião diferente da maioritária no seu país natal ou destino de emigração, a ideia de vestir um fato de Capitão América ou de algum herói popular local para obter o mínimo de aceitação. Mas foi exatamente isso que Vishavjit Singh fez em 2013. Um fotógrafo convenceu o cartoonista a vestir um fato de Capitão América para uma sessão fotográfica nas ruas de Nova Iorque. Ele que, apesar de ter nascido nos EUA, a partir do 11 de setembro, passou a ser visto como estrangeiro e potencial inimigo por ter ascendência indiana e pelo turbante que envergava habitualmente. A reação da comunidade quando vestiu o fato surpreendeu-o: pessoas abraçavam-no; polícias pediam para fazer selfies com ele, os bombeiros ofereceram-lhe boleia, sendo convidado para um casamento. “Foi como se tivesse entrado num universo paralelo” disse Vishavjit Singh que nasceu nos EUA, mas cresceu em Nova Deli, na Índia, e só regressou aos EUA para frequentar a universidade.[1]

Singh professa a religião Sique. Considerada uma religião dármica ou étnica, e por outros uma filosofia originária da região ocidental do Himalaia e sub-Himalaia do Punjabe no subcontinente indiano, por volta do final do século XV, e que, atualmente, conta com cerca de 25 a 30 milhões de crentes.

A história verídica animada de um sikh americano que usa turbante e que, depois de uma vida inteira a enfrentar o ódio, a insegurança e a violência, encontra finalmente a aceitação num fato de super-herói.

O presidente da República de Portugal declarou que “celebrar a liberdade religiosa é celebrar a democracia e a defesa dos direitos humanos. É celebrar a criação de pontes entre diferentes Estados, povos e civilizações. É celebrar a diversidade e a riqueza que a mesma comporta.”[2]

Marcelo Rebelo de Sousa, no dia 22 de junho, para homenagear o Dia da Liberdade Religiosa e do Diálogo Inter-Religioso, acrescentou que “num mundo em que o multilateralismo nem sempre tem conseguido perseverar e em que lidamos com ameaças e desafios emergentes, é cada vez mais relevante estarmos conscientes da relação que existe, por um lado, entre o livre exercício dos direitos humanos nos países democráticos (incluindo a liberdade de religião ou crença) e, por outro lado, a coesão social e a estabilidade política. Bem como do importante papel que o diálogo inter-religioso e intercultural pode desempenhar na promoção da paz a nível mundial.”

Este dia é assinalado em Portugal por resolução da Assembleia da República em 2019.

O Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo, produzido pela Fundação Pontifícia ACN (Ajuda à Igreja que Sofre), o qual será apresentado hoje às 19h00 na Assembleia da República Portuguesa, Auditório António de Almeida Santos, conclui que a maior parte da população mundial vive em países onde a liberdade religiosa é severamente restringida. Este relatório reúne análises da situação legal e constitucional sobre a liberdade religiosa em 196 países.[3]

Segundo o relatório citado, “o direito humano à liberdade de pensamento, de consciência e de religião é violado em cerca de um terço dos países do mundo”, ou seja, em 61 das 196 nações. “Quase 4,9 mil milhões de pessoas”, ou seja, 62% da população mundial, “vivem em países onde a liberdade religiosa é fortemente restringida.

Refere ainda que “em 49 países é o próprio governo que persegue ou mesmo assassina os seus cidadãos por motivos religiosos.”

Resumo do Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo:

 

O relatório acrescenta que “uma das regiões do globo onde a perseguição por motivos religiosos se acentuou mais foi em África. Este continua a ser o continente mais violento, com um aumento dos ataques jihadistas, o que torna a situação da liberdade religiosa ainda mais alarmante. A concentração da atividade jihadista é especialmente evidente na região do Sahel, em torno do Lago Chade, em Moçambique e na Somália, e está a alastrar para os países vizinhos, muitos dos quais permanecem sob observação, tendo sofrido ataques islamistas nas suas fronteiras.

É o caso da Nigéria, onde uma “onda de raptos está a varrer o país e a assustar a comunidade cristã”. Pelo facto de se ter transformado “num dos países mais perigosos de África para a comunidade cristã e muito particularmente para os sacerdotes e as (irmãs) religiosas.”[4]

O relatório assinala ainda com a classificação de “em observação” os países onde foram identificados “fatores de preocupação emergentes que têm o potencial de causar uma rutura fundamental na liberdade religiosa”. Entre estes países encontra-se a Guiné-Bissau. Daí a pertinência do projeto Observatório da PazNô Cudji Paz, uma iniciativa do Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) e da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH), com o apoio e financiamento da União Europeia e cofinanciamento do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P.

No decurso do “I Encontro Nacional de Reflexão de Líderes Religiosos para a Prevenção do Radicalismo e Extremismo Violento” (30/11 e 1/12 de 2022)[5], 50 líderes religiosos adotaram a Agenda Comum para a Paz na Guiné-Bissau. Os líderes religiosos reconheceram os riscos que fenómenos como o radicalismo e o extremismo violento representam para a paz, dado o contexto regional em que a Guiné-Bissau está inserida. A Ministra da Justiça e dos Direitos Humanos da Guiné-Bissau, Dra. Teresa Alexandrina da Silva, considerou na ocasião que a “criminalidade organizada em todas as suas formas, o terrorismo, a corrupção e branqueamento de capitais são ameaças crescentes ao desenvolvimento, paz e estabilidade desta nossa sub-região.”

Em parceria com o Ministério da Mulher, Família e Solidariedade Social da Guiné-Bissau, foi igualmente promovida uma “Roda de Mulheres” (30-01-2023), em Bissau, assinalando o Dia Nacional das Mulheres Guineenses, sob o lema “Fala di mindjeris dibidi conta no processo di kumpu paz”.[6] O evento juntou mais de 200 pessoas para discutir a importância da valorização do papel das mulheres na Prevenção do Radicalismo e Extremismo Violento (PREV) no país.

Ao nível da mobilização das organizações da sociedade civil bissau-guineenses, destacamos a formação em fevereiro de 2023 para a PREV, abrangendo 40 associações.[7]

Igualmente importante foi a formação de 41 jornalistas sobre técnicas para a deteção de sinais de radicalização os quais decidiram avançar para a criação da “Rede de Jornalistas para a PREV na Guiné-Bissau”.[8] A formação abordou tópicos transversais à Prevenção do Radicalismo e Extremismo Violento (PREV), designadamente, noções gerais sobre o radicalismo e extremismo violento; liberdade de imprensa e de expressão face ao discurso de ódio; a dimensão do género na luta contra radicalismo e extremismo violento; e, por fim, o papel dos órgãos de comunicação social na PREV.

Não foi necessário vestirem o fato de heróis da banda desenhada, mas os líderes das três confissões religiosas monoteístas da Guiné-Bissau – católicos, evangélicos e muçulmanos – no dia 4 de junho, num gesto de coragem política apresentaram-se perante o povo, as autoridades locais, a comunidade internacional e os jornalistas apelando aos guineenses, incluindo os cerca de 900 mil eleitores chamados às urnas para as sétimas eleições legislativas, apelando à preservação da tolerância e da paz no país.[9]

A constituição da república da Guiné-Bissau no artigo 6.º advoga “a separação entre o Estado e as instituições religiosas”. E declara que “o Estado respeita e protege confissões religiosas reconhecidas legalmente.”[10] Todavia, existe o risco de o país ser surpreendido pela violência, como acontece no Mali e na região da Africa Ocidental. É por isso crucial o estudo e a necessária articulação com a sociedade civil e as autoridades locais, para compreender as atitudes e práticas das populações sobre o fenómeno religioso, bem como, dissecar as causas, os atores e as áreas onde se manifestam a radicalização e, igualmente, quais as respostas mais eficazes para prevenir a radicalização e o extremismo violento.

O projeto Observatório da Paz – Nô Cudji Paz visa, precisamente, reforçar a participação, o trabalho em rede e o estabelecimento de parcerias estratégicas entre organizações da sociedade civil e outros atores sociais e políticos para abordar e prevenir a radicalização e o extremismo violento na Guiné-Bissau.

Artigo por João Monteiro.

[1] https://edition.cnn.com/style/article/american-sikh-film-captain-america-hyphenated-cec/index.html
[2] https://www.presidencia.pt/atualidade/toda-a-atualidade/2023/06/presidente-da-republica-celebra-o-dia-nacional-da-liberdade-religiosa-e-do-dialogo-inter-religioso/
[3] https://www.fundacao-ais.pt/pt/noticias/portugal–relatorio-da-fundacao-ais-revela-que-um-em-cada-tres-paises-do-mundo-nao-tem-liberdade-religiosa-basica
[4] https://setemargens.com/o-mundo-tem-de-saber-mais-de-metade-da-populacao-vive-em-paises-onde-ha-perseguicao-religiosa/
[5] https://www.imvf.org/2022/12/12/lideres-religiosos-adotam-agenda-comum-para-a-paz-na-guine-bissau/
[6] https://www.imvf.org/2023/01/26/projeto-observatorio-da-paz-no-cudji-paz-assinala-dia-nacional-das-mulheres-na-guine-bissau-com-roda-de-mulheres/
[7] https://www.imvf.org/2023/02/24/observatorio-da-paz-no-cudji-paz-promove-i-acao-de-formacao-dos-membros-das-organizacoes-da-sociedade-civil-sobre-prevencao-do-radicalismo-e-extremismo-violento-na-guine-bissau/
[8] https://www.imvf.org/2023/05/23/observatorio-da-paz-reforca-o-papel-dos-jornalistas-guineenses-na-prevencao-do-radicalismo-e-extremismo-violento/
[9] Declaração conjunta dos líderes religiosos: https://drive.google.com/file/d/1sP_14rsChbrvbS5WLBz_8gVtdfWr4B96/view
[10] Constituição da República da Guiné-Bissau, dezembro de 1996